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COTEC CRP10

Fator amazônico e as práticas da psicologia na reconstrução do SUAS

Atualizado: 11 de ago. de 2023

Estrutura, financiamento e territórios


*Fala coletiva, apresentada por Carmen Hannud Carballeda Adsuara, no Webinário da Região Norte, promovido pelo Conselho Federal de Psicologia, preparatório para a 13ª Conferência Nacional de Assistência Social, ocorrido em 26/07/2023.


Saudações a todas e todos. Para construir essa fala, acionei colegas da região Norte, que atuaram e/ou atuam no SUAS ou em contextos atravessados pelo SUAS, alguns mencionados nominalmente e outros de maneira anônima. Essa rede foi acionada por meio da psicóloga Letícia Palheta, do CREPOP do CRP-10, e por intermédio da psicóloga Rebeca Larissa dos Santos Marinho, da ABRAPSO Norte. A partir dessas conversações, tomei como ponto de partida o diálogo com o psicólogo Max da Costa Alves, que atua em Abaetetuba, no Pará, é vice-presidente do CRP-10 e membro da Comissão Especial de Psicologia na Assistência Social.


Para ele, falar de Amazônia é falar de nuances, de um cenário complexo, que coloca desafios objetivos e subjetivos para a psicologia no SUAS. Como salientou a psicóloga e professora Eloísa Amorim de Barros, de Óbidos-PA, atuante em Santarém-PA, durante o encontro da ABRAPSO: “é preciso falar das Amazônias”. Na mesma direção, a psicóloga Lidiane Colares de Faro, da gestão estadual da assistência social no Amapá, e que integra a CONPAS, trouxe a preocupação com relação a geografia da Amazônia Amapaense, trazendo aspectos como o difícil acesso a alguns territórios como um desafio para a constituição de equipamentos do SUAS, como também do recurso humano para o trabalho: “o que está especificado não dá conta dessa realidade”.


O mesmo ocorre, conforme conversamos, mediante a grande riqueza étnico-cultural, com a questão da pluralidade de concepções sobre família, infância, entre outras categorias que atravessam a política pública, e que também configuram uma contradição que necessita ser pensada no controle social, problemática que é apontada na Referência Técnica para atuação da Psicologia junto aos Povos Indígenas:


[...] A PNAS prevê a necessidade da adoção de mecanismos que possibilitem às(aos) indígenas ações que garantam o direito aos seus costumes, crenças, tradicionalidades, bem como a promoção de um trabalho social equitativo, porém não dá indicações metodológicas de como este trabalho poderia ser realizado. Somente em 2014 é lançado o caderno de orientação técnica sobre o “Trabalho Social com Famílias Indígenas” [...] (...) Para a efetivação da assistência diferenciada aos povos indígenas, especialmente no que tange a matricialidade sociofamiliar e socioterritorial, é importante a tomada de concepções ampliadas do conceito de família e território, principalmente, quando referenciados desde as compreensões cosmológicas dos próprios povos. Entretanto, a tímida proximidade dos conhecimentos originários na elaboração das políticas conduz à reprodução de noções ocidentais, normatizando funções e modos de atuação em modelos restritos. (CFP, 2022, p. 153-154).

Falar das Amazônias reconstruindo o SUAS, portanto, parece apontar para a necessidade de ouvir-se as vozes dos povos e construir práticas horizontais, a fim de promover serviços diferenciados. Contudo, ainda há que se dizer que nessas Amazônias muitas vezes o Estado não se faz presente, havendo uma ausência da própria psicologia nos territórios, como pude vivenciar quando morei com o povo Ãwa na Ilha do Bananal no Tocantins, como também em ocupações urbanas. Há uma questão geográfica, mas também uma intencionalidade política, portanto.


Nesse sentido, não é possível falar dessa diversidade sem falar de ataques aos direitos; dos assassinatos no campo; do trabalho escravo, cenário acirrado nos anos de pandemia e pandemônio. No caso do Acre, isso fica muito evidente na conversa que tive com o psicólogo socioambiental Leandro Rosa, atuante com movimentos populares. Ele me explicou que a psicologia socioambiental tem sido construída em seu Estado a partir da luta dos seringueiros, e o desafio que se coloca no território tem sido pensar em como essa Psicologia pode vincular-se à questão da crise climática e que o que tem sido pensado a partir da tradição de Chico Mendes, junto às alianças dos povos da floresta, é que a crise climática não pode ser superada dentro do capitalismo, implicando na necessidade de uma reestruturação social e de se pensar em uma sociedade não capitalista.


Vale dizer, é preciso falar sobre isso especialmente no contexto do SUAS, que é uma política que, desde a concepção, trabalha diretamente com violências e violações de direitos, como sinalizou o psicólogo e professor Robenilson Barreto, com histórico de atuação em diferentes no Tocantins e no Pará. Ou seja, para além de uma escuta dos territórios, se faz necessário pensar com muita seriedade e compromisso na segurança dos profissionais, reconhecendo-lhes como “agentes de direitos humanos”, conforme o psicólogo e professor André Benassuly trouxe em nossa conversa.


André contou que em 2006, quando atuou no município de Trairão-PA, trabalhou no CRAS e fez um trabalho com as famílias de crianças e adolescentes em condição de vulnerabilidade, realizando ações que “bateram de frente” com a “mafia” de prostituição infantil na cidade. Foi ameaçado de morte e pouco tempo depois foi embora. Ele explicou que apenas a partir dessa experiência se deu conta de que era um agente de direitos humanos - algo que acredito que precise estar nítido na política pública, acerca da identidade profissional no SUAS.


No Encontro ABRAPSO, em Santarém-PA, um colega de Rondônia, denunciou sobre os riscos contra sua vida, na defesa dos direitos humanos na assistência social. Ele relatou o seguinte: “Os juízes agrários de Rondônia criminalizam a luta pela terra. Deu reintegração de posse para grileiros [...]. E nos intimou a ir até a fazenda conversar com o movimento da Liga dos Camponeses Pobres e explicar que eles tinham que sair. Mas o endereço na sentença era o da fazenda. Fomos interceptados pelos seguranças [...] Semanas depois desse fato, veio a expulsão das famílias de forma violenta. Fomos obrigados a manter um abrigo provisório para estas famílias[...] recebemos mais de 500 pessoas e nenhuma estrutura para manter o abrigo. Foi uma semana e meia de terror, sendo ameaçados pela PM e Força Nacional. Sempre ameaçando invadir o abrigo, prender e até matar as pessoas, incluindo o psicólogo”.


Contudo, as violências contra os profissionais podem ser protagonizadas por diferentes atores. Outro companheiro da psicologia que possui histórico de atuação no nordeste do Pará relatou que quando era técnico na medida socioeducativa, passou por uma situação desafiadora no acompanhamento de um jovem. O rapaz tinha o entendimento de que a equipe que o acompanhava estava do lado do juiz e decidiu ameaçar as pessoas. Ele lembra que foi seguido mais de uma vez e depois recebeu ameaças. Ele procurou orientação junto ao CREPOP, e a partir disso fez um diálogo com a gestão do serviço que resultou em um seguro de vida para a equipe. Esse fato abre vários debates acerca de como trabalhar a segurança em um serviço “portas abertas” e que merece um olhar cuidadoso do controle social.


No contexto específico de Roraima, uma companheira psicóloga denunciou que “temos duas questões: facções e garimpo [...]. Não só os profissionais, mas as próprias famílias são vítimas. Em determinados casos de violência, os agressores são membros de facção, e por vezes, conseguem contatar os profissionais que acompanham as vítimas. Por algum motivo, enxergam nossa atuação como um risco para eles. Já recebi telefonemas também já fui avisada que estava sendo ‘vigiada’ e que qualquer conduta que desagradasse, teria consequências. Mais recentemente, vimos muitos casos de exploração sexual [...] E o mesmo mecanismo de ameaça [...]. Acredito que isso seja reforçado pela atuação do judiciário de utilizar nossos relatórios [...] como parte de suas decisões nos processos”.


Em Roraima, Andreza Evangelista Guimarães Tavares, que atua no CREAS em Boa Vista, relatou algo convergente: “houve situações em que meu parecer técnico para desligamento de casos não foi acatado por juízes da Vara da Infância. [...] O sentimento é de que sua capacidade técnica não vale nada diante de um ‘cumpra-se’ da justiça. Faz parecer que os psicólogos do SUAS prestam serviços jurídicos e são constantemente acionados para tapar brechas onde faltam profissionais”.


No interior do Tocantins, Sueli Marques Ferraz, psicóloga pesquisadora da população em situação de rua, ao tentar articular a rede de políticas públicas junto a essa população sofreu perseguições e ameaças: “diversas vezes quando conversava com as pessoas em situação de rua elas me alertavam sobre os cuidados que eu devia ter pois tinha pessoas me seguindo. [...] fui seguida [...] Recebi ligações com ameaças. [...] Para terminar a pesquisa, precisei acionar minha rede de apoio para fazer ronda enquanto eu permanecesse no local”.


As violências contra psicólogos atuantes com direitos humanos no SUAS ou em contextos atravessados pelo SUAS são as mais diversas, ocorrendo também nos espaços de trabalho. Voltando para o nordeste paraense, no CREAS, um outro relato de profissional trouxe o conhecido assédio moral como uma violência contra o psicólogo defensor da política pública e dos direitos. A partir da recusa em realizar uma prática anti-ética para beneficiar determinada família, o psicólogo foi ameaçado de demissão por um vereador.


Situação semelhante aconteceu comigo no Estado do Tocantins, em um contexto atravessado pelo SUAS. Quando trabalhava em uma instituição de ensino superior privada, ao mesmo tempo em que atuava no Movimento Nacional de Luta pela Moradia, junto com Robenilson Barreto, em uma cidade do interior, por meio do movimento estávamos buscando fortalecer a auto-organização dessa população na defesa do acesso à saúde e à assistência. Após alguns tensionamentos com a gestão do município e com o conselho tutelar, no contexto do movimento social, fui ameaçada de demissão na instituição particular, gerando adoecimento psíquico.


Outro relato, anônimo, veio de uma colega que possui experiência no Pará e no Amapá, que partilhou sobre a precarização do serviço: “Um serviço que tem que ser ofertado de qualquer forma, com demandas enormes; e quando a gente não faz aquilo que eles esperam que a gente faça, nós somos taxados como maus profissionais. Já recebi de formas absurdas situações de assédio moral, de rechaçamento, por não fazer aquilo que eles queriam que eu fizesse. [...] Aí eu tinha que me impôr, se não as crianças não tinham seu direito garantido [...]. Em outro município no Pará, próximo a Belém, eu recebi muitos questionamentos do Conselho Tutelar [...], que levava a maioria dos acolhidos pra lá. E eles queriam que a gente tratasse os acolhidos da forma que eles tratavam [de maneira punitiva e violenta]”.


Em Roraima, uma companheira da psicologia relatou de maneira convergente que “a atuação de diversos profissionais dentro do SUAS [...] é perpassada pelo assédio moral. Tanto da gestão, quanto dos órgãos da justiça, e conselhos tutelares. Isso inclui atribuição de demandas de outras políticas, perseguição, multas advindas do judiciário”, etc.


Quando perguntei para a psicóloga e professora Socorro de Fátima Moraes Nina sobre o cenário de violências contra os profissionais em Manaus, ela comentou que isso a fez lembrar de situações que ela mesma passou no contexto do SUS, e sobre o que ela não pensava há alguma tempo, pois “estavam invisíveis”. Sobre o SUAS, em específico, ela não conseguiu identificar nenhuma situação junto a outros colegas, mas isso não significa que não ocorra; ela mesma enfatizou que “a psicologia tem sempre que escolher um lado”. É possível que as psicólogas passem por violências e não reconheçam aquilo, fazendo-se necessário se questionar sobre isso. Considerando esse cenário possível, ela acha muito importante pesquisar sobre as violências contra profissionais da psicologia no SUAS, e em outras políticas públicas, a fim de tornar isso visível.


Conversando com Max da Costa Alves, refletimos que nesse território complexo, a condição de trabalho fortalece a segurança do profissional na contramão de uma condição sem recurso, sem estrutura e sem rede para realizar nossas práticas. Letícia Palheta, relatou sobre encontros que tem realizado “com psis da assistência, e o que temos discutido [...] gira em torno da rotatividade de profissionais e a precariedade dos vínculos de trabalho. Os serviços ainda preconizam [...~] equipes mínimas, dificultando a realização [...] do acompanhamento das famílias”, pautas que dialogam com o financiamento do SUAS.


Por outro lado, conforme Robenilson Barreto, “não necessariamente a questão orçamentária resolve o problema das ameaças e da fragilidade da relação de trabalho”, é importante que ocorra “uma pactuação entre as federações e entidades[...]: a abertura de canal de denúncia, uma aproximação mais efetiva desses profissionais com o sistema judiciário; um tipo de relação que garanta o exercício legal do nosso trabalho”.


Em meio a esse debate, considerando que o Sistema Conselhos de Psicologia ocupa espaços no controle social a fim de defender os direitos dos usuários dos nossos serviços, vale refletirmos que para que o direito dos usuários do SUAS seja garantido, quem defende esse direito precisa ter respaldo. Para reconstruir o SUAS, reinventar as práticas conectadas com as realidades dos territórios, para defender direitos, se faz necessário pensar atentamente sobre essa relação. Nesse sentido, para fechar minha contribuição gostaria de fazer algumas proposições em diálogo com os colegas; quais sejam:

  • Com relação à pauta étnico-cultural, citando Robenilson Barreto, “o SUAS tem que ter como princípio ser anti-racista”, nesse sentido, tendo em vista a demanda de fortalecer o aspecto diferenciado no atendimento às diferentes comunidades, faz-se importante pensar e criar estratégias para que as lideranças indígenas, negras, quilombolas e tradicionais estejam cada vez mais participantes do controle social no cotidiano do SUAS;

  • Sobre a pauta de formação e fortalecimento de vínculos em um contexto socioambiental próprio, emerge cada vez mais a necessidade de se pensar o SUAS junto aos movimentos populares, a exemplo do que tem sido feito no Acre com uma “práxis política socioambiental para uma transformação estrutural da sociedade, fortalecendo coletivos e vínculos a partir do horizonte de mudança estrutural na sociedade, conforme Leandro Rosa;

  • No que se refere à pauta da proteção das psicólogas, faz-se necessário criar espaços para articulação de uma rede de proteção e prevenção das violências contra os profissionais. Robenilson Barreto partilhou que seria interessante pensarmos em um Observatório, ou em um Fórum, enfim, em uma pactuação entre psicologia, defensoria, ministério público, movimentos sociais, sindicatos, universidades, entidades da psicologia, etc, que possa realizar ações de vigilância, criar canais de denúncias, produzir relatórios, acompanhar, etc, em relação às “violações de direitos dos trabalhadores do suas”;

  • Nesse sentido, somo forças com a professora Socorro Nina e com o professor Robenilson Barreto na proposta de produção de uma pesquisa, portanto, acerca das “violações de direitos dos trabalhadores do suas e de contextos atravessados pelo SUAS”, como um conhecimento de realidade a ser produzido em caráter de urgência pelo controle social a fim de desvelar essa realidade de trabalho para a reconstrução do SUAS.

Por fim, agradeço ao CFP pelo convite, e a todas e todos colegas parceiras e parceiros pela construção conjunta. Espero que esse trabalho singelo, mas coletivo e comunitário, tenha contribuído na caminhada rumo à 13ª Conferência Nacional do SUAS, de modo que as pautas do Projeto Social das Psicologias Amazônidas possa somar na reconstrução não apenas do SUAS, mas do Projeto de Sociedade como um todo. Obrigada!


 

REFERÊNCIA: CFP, Conselho Federal de Psicologia. Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) junto aos povos indígenas. Conselho Federal de Psicologia, Conselhos Regionais de Psicologia, Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Pública. — 1. ed. — Brasília : CFP, 2O22.


* Por André Benassuly Arruda Andreza, Evangelista Guimarães Tavares, Carmen Hannud Carballeda Adsuara, Eloísa Amorim de Barros, Fernanda Ingredy Dantas de Araújo, Giovany dos Santos Lima, Larisse Mayla Araújo de Souza, Leandro Amorim Rosa, Letícia Maria Soares Palheta, Lidiane Colares de Faro, Marcela Acioli, Max da Costa Alves, Rebeca Larissa dos Santos Marinho, Robenilson Moura Barreto, Socorro de Fátima Moraes Nina, Suelí Marques Ferraz e Valber Luiz Farias Sampaio.

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