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O papel da(o) psicóloga(o) junto aos povos indígenas: a psicologia na luta por demarcação, direitos humanos e reparação histórica

Robert Damasceno Monteiro Rodrigues*

Eliana Arara da Costa**


Em meio às lutas contra a ditadora salvadorenha nos anos 1970, Ignácio Martín-Baró escreveu o texto intitulado O Papel do Psicólogo. Nele, o autor identifica uma das tarefas centrais da psicologia, que seria assumir a perspectiva das maiorias populares da América Latina e aliar-se aos movimentos de luta por sua libertação.

Resgatando este ensinamento, hoje, no Dia dos Povos Indígenas, falando desde a Amazônia brasileira, lançamos a questão: qual deve ser o papel da psicologia junto aos povos indígenas? Para responder a esta pergunta, é necessário antes questionar o papel que a psicologia desempenhou historicamente e que, atualmente, ainda subsiste, na relação com os povos indígenas.

Neste sentido, Ailton Krenak questiona: “será que finalmente esse mundo abstrato da psicologia vai apanhar a nós todos? Inclusive aqueles que sabiam se curar com o banho do rio, com a raiz das árvores, com o que a terra fala?”. Na questão posta por Krenak, está presente, ao mesmo tempo, a crítica ao caráter colonial e impositivo das técnicas psicológicas e a preocupação com a manutenção dos saberes e modos tradicionais de cuidado dos povos que vivem em relação com a floresta.

Neste diálogo, não pretendemos criticar a atuação de profissionais que se dedicam a um trabalho ético e comprometido com a garantia de direitos dos indígenas, seja na saúde ou demais programas, mas sim à psicologia enquanto ciência e profissão, que transita em dois modos de olhar os povos indígenas, ora como um olhar que não vê, porque segue a linha de invisibilizá-los, ora como umolhar que devora, tomando-os como parte de seu mercado, fonte de lucro e experimentação.

Inversamente, porém, é necessário que a psicologia assuma a perspectiva dos povos indígenas ou, mais precisamente, dialogando com Eduardo Viveiros de Castro, as várias perspectivas dos povos ameríndios. Assumir estas perspectivas implica considerá-los, sim, como maioria. Segundo o Censo do IGBE de 2022, existem no Brasil 1,7 milhões de indígenas autodeclarados, o que corresponde a apenas 0,83% da população geral. No entanto, em nosso país estão presentes 305 povos distintos que falam 274 línguas indígenas.

Os povos indígenas, portanto, são maioria em termos de diversidade étnica, linguística e cultural; são maioria em termos históricos, porque já habitavam a região milhares de anos antes da chegada dos invasores europeus; são a maioria em convívio com a floresta e, particularmente, nos usos daquilo que a natureza permite para diversas formas de proteção da vida, cura, e tratamento de doenças. Do mesmo modo, atualmente, os povos indígenas no Brasil também fazem parte das maiorias em termos de ataques, violências, ameaças, negação e retirada de direitos.

Portanto, assumir as perspectivas dos povos indígenas significa assumir as suas principais bandeiras de luta, significa usar os saberes e técnicas produzidos pela psicologia para defender a urgência na demarcação de todos os territórios indígenas. Demarcar um território não é só delimitar um espaço físico de terra; é também preservar culturas, modos de viver, de se relacionar e produzir subjetividades; é demarcar existências, singularidades, mas também coletividades e matrizes tradicionais de pensamentos repassados, sobretudo, pela oralidade. Demarcar o espaço físico é garantir a continuidade dos territórios existenciais, livres para o movimento de ir, permanecer e voltar.

Por outro lado, assumir as perspectivas dos povos indígenas, para a psicologia, implica em produzir um desmonte de todos os saberes e técnicas psis, espalhá-los pelo terreiro e banhá-los no rio para, assim, poder juntá-los com a cola de jenipapo dos saberes ancestrais. Chega, portanto, de a psicologia tentar traduzir a sua linguagem para que os indígenas possam entender; é necessário, à(ao) psicóloga(o), que ela(ele) se transduza aos conhecimentos indígenas como fonte de produção de saúde, não apenas para os indígenas, mas para o conjunto da sociedade ocidental.

Ainda segue sendo vendida a ideia de que a salvação e cura para todas as doenças e sofrimentos está no mercado, no desenvolvimento da ciência e no avanço da indústria farmacêutica. Receitas vendidas e doenças criadas para remédios já produzidos em laboratórios, disputando a dianteira com o comércio internacional de armas e o tráfico de drogas. O ‘homem da mercadoria’ como diz Kopenawa. A salvação, na verdade, está na floresta.

Davi Kopenawa Yanomami vem há tempos alertando que quando morrer o último xamã o céu vai desabar e o mundo tal como nós conhecemos não vai existir mais. O céu estala e dá sinais, mas o barulho ensurdecedor das cidades não nos deixa ouvir; na floresta é mais fácil de escutar. O antropoceno se impõe como uma realidade assustadora, apontando para o fim dos tempos em um colapso climático global. Mas quem mais está tentando segurar o céu junto com os xamãs? Como a psicologia pode ajudar para não sermos esmagados por nossa própria arrogância?

Uma das formas, também, é lutar contra o marco temporal. Ao invés de delimitar no tempo os direitos dos povos indígenas com base no assalto ao nosso país, é necessário extemporalizar as existências indígenas com base nas ancestralidades. Aí a psicologia tem papel fundamental, pois valoriza a subjetividade como atributo que não se limita no tempo, mas que é produzida pela ação da cultura, da sociedade e das gerações passadas, pela história de um povo que continua a lutar.

Os direitos dos povos indígenas são extemporâneos porque assim também são as suas ações e contribuições com a sociedade. Na Amazônia, boa parte do que existe, dos frutos que comemos e da terra em que plantamos, foi criado pelas tecnologias desenvolvidas pelos povos indígenas que vivem aqui há muito tempo antes de nós. Para a psicologia, deste modo, lutar pelos direitos dos povos indígenas é lutar por justiça, por reparação histórica e valorização do trabalho dos indígenas para o que somos hoje.

O papel da(o) psicóloga(o) junto aos povos indígenas, portanto, não está definido nos testes, na psicoterapia ou nas teorias clássicas; está antes de tudo, fundamentado nos processos de luta e resistência, nos saberes e práticas dos povos indígenas, no deslocar do singular para o coletivo. Tal como, na maioria das culturas ameríndias, o ser humano pouco se diferencia dos demais animais e fenômenos da natureza, cabe à(ao) psicóloga(o)também, se desumanizar, para reflorestar seu pensamento, sua ciência e profissão.



*Psicólogo (CRP-10/7512), Coordenador Técnico do CRP-10 e membro da Comissão de Psicologia e Povos Indígenas. Doutorando em Psicologia no PPGP- UFPA.

** Psicóloga (CRP-10/6378). Indígena do Povo Arara, psicóloga do DSEI Amapá e Norte do Pará. Especialista em Saúde Indígena e membro da Comissão de Psicologia e Povos Indígenas do CRP-10.


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